Em 1979, um dos satélites de reconhecimento do projeto Vela teria detectado um teste nuclear realizado pelo Estado de Israel nas ilhas do Príncipe Eduardo, região próxima a Antártida
Era o dia 22 de setembro de 1979, exatamente no equinócio de primavera do hemisfério sul. O auge da Guerra Fria entre o bloco comunista, capitaneado pela extinta União Soviética (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS), e o grupo de nações capitalistas, encabeçado pelos Estados Unidos (da América, EUA), já havia passado. O momento não apresentava mais ataques diretos entre os adversários russos e norte-americanos, mas caracterizava-se pela disputa, nos bastidores, sobre o alinhamento econômico e ideológico dos países chamados, naquela época, de “Terceiro Mundo”, o que incluía estados do leste asiático, da América latina e de todo o continente africano.
Essa rivalidade se travava, principalmente, no campo militar, com os soviéticos priorizando redes de espionagem e os estadunidenses optando por imensos programas de armamentos: uma espécie de soft power versus hard power. Todo esse cenário havia levado os EUA a lançarem ao espaço, ainda na década de 1960, um conjunto de 12 satélites dentro do escopo do projeto Vela, o qual tinha como objetivo detectar testes nucleares realizados por nações que possuíam (ou estavam na iminência de possuir) um programa de armas nucleares.⠀
Metade desses equipamentos, os satélites do tipo Hotel, se destinava a detectar explosões nucleares no espaço, enquanto a outra metade, os do tipo Advanced, identificava tanto testes atômicos realizados no espaço quanto na atmosfera. E foi o Vela Advanced 10 (ou Vela 5B ou Vela OPS 6911) que constatou o que seria um teste nuclear nas ilhas do Príncipe Eduardo, um arquipélago de duas ilhas pertencentes à África do Sul e que se situa no extremo sul do Oceano Índico, em uma região próxima à Antártida.
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A Explosão
Os sensíveis detectores dos satélites Vela, alimentados pela energia gerada por painéis solares, eram destinados a identificar emissões de raios X, de raios gama e de nêutrons, além de serem capazes de monitorar, em intervalos de milissegundos, sinais luminosos suspeitos de terem origem nuclear. O aparato a bordo dos equipamentos era tão desenvolvido para a época que os satélites eram capazes de localizar uma explosão nuclear mesmo estando a cerca de 100 mil km de distância da Terra.⠀⠀
Antes mesmo do lançamento da família de satélites, cientistas já sabiam que explosões nucleares atmosféricas, como aquelas realizadas no Japão durante a Segunda Guerra, produziam uma assinatura única, muitas vezes chamada de “double-humped curve” ou, em uma tradução livre, curva de duas corcundas: um flash curto e intenso, com duração de aproximadamente 1 milissegundo, seguido por uma segunda emissão de luz muito mais prolongada (entre um e vários segundos) e muito menos intensa.
Segundo os especialistas, tal efeito ocorre porque a superfície brilhante do “cogumelo” nuclear inicial (primeira corcunda) é rapidamente ultrapassada pela onda de choque atmosférico em expansão composta, praticamente, de oxigênio (O₂) e nitrogênio (N₂) ionizados. Embora essa onda de choque também emita uma quantidade considerável de luz, ela é opaca o suficiente para formar uma espécie de escudo que barra o brilho gerado pelo “cogumelo” inicial. À medida que essa onda se expande, ela esfria e os átomos de oxigênio e nitrogênio voltam ao seu estado normal, o que deixa a atmosfera transparente de novo permitindo que a luz inicial, muito mais quente e brilhante, torne-se visível novamente (segunda corcunda).⠀
E foram essas duas “corcundas”, o famoso flash duplo, que foram detectadas às 00:53 (horário local) daquele dia, no evento que viria a ser chamado de Incidente Vela 747. Equipado com radiômetros capazes de estimar a potência do aparato nuclear a partir do intervalo de tempo e da intensidade das duas corcundas, o Vela 5B indicou uma explosão de aproximadamente 3 kilotons, algo em torno de 20% da força da bomba Little Boy lançada pelos EUA sobre Hiroshima em 6 de agosto de 1945.
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Sinal de Alerta
Mesmo com a assinatura, em 1963, do Tratado de Banimento de Testes de Armas Nucleares na Atmosfera, no Espaço Exterior e sob as Águas (o nome é longo!) por 113 países, o que incluía a URSS, os EUA, Israel e África do Sul (estes dois últimos diretamente envolvidos no Incidente Vela, como veremos) testes com bombas atômicas eram experimentos relativamente comuns nas décadas de 1960 e 1970: 1307 artefatos atômicos seriam detonados nessas duas décadas, o que corresponderia a impressionantes 63% do total de 2056 explosões nucleares realizadas de 1945 até 2022.⠀
E o monitoramento de cada uma dessas explosões era de crucial importância para o planejamento das ações militares de cada potência hegemônica da época: assim, tanto os soviéticos quanto os norte-americanos saberiam onde era realizado o teste e qual a potência do artefato nuclear desenvolvido pelos países, sendo um aliado ou não.
Foi na base aérea Patrick, na Flórida, onde ainda era noite do dia 21, que os encarregados de monitorar as transmissões do satélite viram o padrão inconfundível produzido por uma explosão nuclear, algo que os satélites já haviam detectado 41 vezes em ocasiões anteriores. A base da Força Aérea imediatamente emitiu um alerta levando o presidente Jimmy Carter a convocar uma reunião na Sala de Crise da Casa Branca.
Assim, tendo o sistema de monitoramento mais avançado da época e uma clara evidência de violação do Tratado de Banimento de Testes de Armas Nucleares em mãos, todo o alto escalão do governo norte-americano fora imediatamente informado. Alguns especialistas consultados pela Casa Branca afirmaram que os dois clarões detectados pelo satélite, na verdade, teriam sido o resultado do impacto de um micrometeorito no equipamento. Segundo eles, a entrada inicial do objeto espacial no campo de detecção do satélite fora o fator responsável pelo flash inicial e a disseminação de detritos provenientes desse impacto o responsável pelo segundo flash.⠀
Entretanto, hoje, após a abertura de documentos antes considerados confidenciais, com os relatos descritos no livro On the Brink do diretor da CIA durante o evento, Stansfield Turner, e da divulgação do diário do próprio ex-presidente Jimmy Carter, a tese do meteorito está praticamente descartada e a “teoria da conspiração” que havia sido levantada na época parece ser a mais plausível: a de que o teste nuclear havia sido realizado por Israel.
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Investigação e Outros Indícios
Logo após o alerta, a Força Aérea dos EUA enviou a aeronave WC-135B Constant Phoenix em 25 voos, entre 22 de setembro e 29 de outubro, para investigar a atmosfera da região próxima ao flash, totalizando 230 horas de investigação. Apesar do esforço da missão, nenhum produto resultante da fissão nuclear fora encontrado na atmosfera examinada.
Entretanto, ao pesquisar sobre os padrões de vento nos dias subsequentes à explosão, investigadores levantaram a hipótese de que os vestígios de uma explosão atômica no sul do Oceano Índico poderiam ter sido transportados para territórios próximos à Austrália. Análises da tireoide de ovelhas criadas nos estados australianos de Victoria e da Tasmânia revelaram a presença de iodo-131, um isótopo radioativo do elemento iodo produzido a partir da fissão realizada em reatores nucleares ou em bombas atômicas. Contudo, a mesma pesquisa não detectaria esse isótopo em ovelhas criadas em regiões onde aqueles padrões de vento não chegavam, como na Nova Zelândia, o que, segundo os investigadores, seria o segundo indício da explosão atômica.⠀
Além dos sinais luminosos detectados pelo Vela 5B e do iodo-131 presente na tireoide das ovelhas australianas, um terceiro e forte indício que corroboraria a teoria da explosão atômica foi investigado: a análise do som do fundo do mar. O Laboratório de Pesquisa Naval dos EUA gerou um relatório, em junho de 1980, que, embora permaneça confidencial, teve sua essência divulgada por meio de uma carta publicada por seu diretor. Nela, Alan Berman chamou a atenção da Casa Branca para os sinais hidroacústicos que a Marinha norte-americana havia captado naquela madrugada e que eram consistentes com o resultado causado por uma explosão nuclear.
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Apesar das Evidências, Inconclusão
Em 1977, o governo norte-americano já estava ciente e, ao mesmo tempo, preocupado com a cooperação nuclear israelense-sul-africana: os dois países possuíam programas para o desenvolvimento de armas nucleares táticas, artefatos de menor impacto. Entretanto, sempre que perguntado sobre o assunto, o primeiro-ministro de Israel, Menachem Begin, negava qualquer colaboração entre seu país e a nação africana. Apesar disso, os órgãos de segurança dos EUA tinham plena convicção de que a África do Sul estaria trabalhando na construção de uma bomba de fissão ao passo que Israel, um parceiro militar estratégico das forças armadas sul-africanas, já era detentor de um arsenal nuclear ainda não testado.⠀
De posse dessas informações e analisando a situação após o incidente, Jimmy Carter, presidente dos EUA em 1979, escreveria em seu diário, no dia 22 de setembro daquele ano, uma frase que resumia o número de suspeitos pelo ocorrido a apenas dois países: “Havia a indicação de uma explosão nuclear na região da África do Sul – África do Sul, Israel usando um navio no mar ou nada.”⠀
Somado isso, um estudo da CIA lançado em dezembro daquele ano e intitulado “O Evento de 22 de setembro de 1979” analisaria as possibilidades de que a África do Sul ou Israel (ou ambos em conjunto) fossem os responsáveis pelo teste nuclear. Embora alguns trechos do estudo permaneçam sob sigilo, ele aponta para Israel, com mais de 90% de probabilidade, como o país autor da detonação no sul do Oceano Índico. Além disso, segundo o relatório, de todos os países que poderiam ter sido responsáveis pelo evento de 22 de setembro, Israel seria o único para o qual um teste clandestino teria sido virtualmente sua melhor (e talvez) única opção.⠀
Até os dias atuais, as autoridades norte-americanas se recusam a confirmar que Israel realizou testes nucleares atmosféricos na costa sul-africana em setembro de 1979. Admitir que Israel o fez poderia desencadear uma série de sanções econômicas por parte dos EUA e da União Europeia, assim como aquelas realizadas contra países como Irã e Coreia do Norte. Além disso, a afirmação de que sabia que Israel não cumprira o acordo nuclear assinado em 1963 e ratificado no ano seguinte poderia deixar os EUA, os maiores aliados do país localizado no Oriente Médio, em uma posição extremamente difícil perante a opinião pública mundial.⠀
Apesar disso, mesmo com todos os envolvidos se omitindo ou negando o fato, hoje, a grande maioria dos países e especialistas têm plena convicção de que o evento foi realmente um teste nuclear conduzido por Israel, com a ajuda (ou não) da África do Sul, e de que o estado israelense possui entre 50 e 100 artefatos atômicos em seu arsenal.
📙 Referência 1: The 22 September 1979 Vela Incident: Radionuclide and Hydroacoustic Evidence for a Nuclear Explosion, 2018, Science & Global Security, vol. 26, p. 20.
📙 Referência 2: The 22 September 1979 Vela Incident: The Detected Double-Flash, Science & Global Security, 2017, vol. 25, p. 95.